Morangos sem Açúcar: (31) Trail da serra da Freita: uma metáfora dos heróis quotidianos

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Olá e bem-vindos ao meu podcast e blog “Morangos sem Açúcar”, uma série sobre desenvolvimento pessoal, corpo, mente e bem-estar – pessoal e do planeta em que vivemos. O meu nome é Karlos K e gostaria imenso de ouvir a SUA opinião, comentários e experiências pessoais, através do email karlosk.books@gmail.com, no Instagram ou Facebook @karlosk.escritor ou no site www.karlosk.com/contacto.  

Fiz este fim de semana o trail da serra da Freita. 29km duros, a subir a uma das mais belas serras do país. De joelhos no meio da lama ou agarrado desesperadamente a uma rocha para escalar a escarpa, apercebi-me de como os 29.000 metros da prova são uma metáfora para os 29.000 dias das nossas vidas.

A serra da Freita ergue-se como um gigante sobre as vilas de Arouca, Vale de Cambra e São Pedro do Sul. É uma serra encantada pelos riachos e cascatas que a percorrem e pelas majestosas gargantas entre vales e serra – as “goelas”, como lhes chamam as gentes da terra. Estas goelas de escarpas ingremes parecem uma bocarra enorme entre a terra e o céu.

Classificada como geoparque mundial da Unesco, a serra da Freita é uma viagem no tempo pelas gravuras rupestres, um conjunto megalítico e dólmen, uma mina romana, percursos em calçada romana e minas de quartzo. O rio Paiva corta a serra e propõe um longo passeio pelos passadiços do Paiva, com a maior ponte pedonal suspensa do mundo.

Não me contentei com o “passeio” dos 15km, mas também não tive coragem para os “ultra” de 65km ou 100km, ficando-me pelo honroso percurso de 29km.

De joelhos no meio da lama ou agarrado desesperadamente a uma rocha para escalar a escarpa, apercebi-me de como os 29.000 metros da prova são uma metáfora para os 29.000 dias das nossas vidas (assumindo uma vida de 80 anos). Cada dois passos da corrida são equivalentes a um dia das nossas vidas. Os 29km fazem-se um passo de cada vez, como a vida se faz um dia de cada vez, cada um dos 29.000 deles.

Na verdade, cheguei atrasado cerca de 20 minutos. Resultado de andar a fazer demasiadas coisas ao mesmo tempo, retive do email das instruções que a entrada nas box de partida era às 8.00 para saída às 8.30… mas afinal a saída era às 8.00. Enfim, lancei-me à estrada, um tanto desanimado mas sem querer reconhecer o meu erro ou desistir. Como se não bastasse chegar atrasado, virei mal na primeira bifurcação (já estavam a tirar as marcas sinalizadoras em preparação da saída dos 15km), e fiz uma direita quando devia ter feito uma esquerda. Ia já uns bons 2km na corrida, quando um carro se aproxima a buzinar e o condutor a fazer sinais… uma alma caridosa da organização veio atrás de mim de carro e deu-me uma boleia de volta para trás, colocando-me na entrada para os trilhos da serra. Recuperei os 2km iniciais do percurso em estrada, que teriam levado 10-15 minutos. Corri talvez 30 minutos sozinho, a tentar calar o diálogo que estava ao rubro entre as vozes na minha cabeça, mas ao fim desse tempo consegui apanhar a cauda do pelotão e juntar-me à prova.

Aquela ajuda inicial, de um desconhecido que vim depois a descobrir era o José Moutinho, organizador desta e muitas outras corridas e o “pai” do trail em Portugal – aquela ajuda inicial foi a necessária para me permitir juntar a corrida. Metaforicamente, foi a pequena ajuda, o empurrão necessário para saltar e entrar no jogo, tal como muitas vezes precisamos de alguém ou alguma coisa que nos coloque no nosso caminho e diga “pronto, agora vai…”, que nos faça juntar à luta.

Curiosamente, este começar em último acabou por ter um efeito psicológico engraçado. Basicamente, fui ultrapassando outras pessoas. É sempre melhor ultrapassar do que ser ultrapassado, dá ânimo para continuar. Se tivesse partido no meio do pelotão, teria certamente sido ultrapassado muitas vezes, enquanto que começar como o “underdog” permitiu-me encontrar o lugar natural na prova.

Ora, até aqui tudo bem. Uma vegetação densa típica das serras portuguesas, trilhos que subiam e desciam… Lá íamos todos, guerreiros incautos e cheios de força, sem saber as dificuldades que a serra ali à frente iria colocar no nosso caminho. A ignorância dos perigos e desafios é confortável.

Só que o conforto não transforma. Não nos faz crescer. Não eleva a mente ou a alma. É fácil e rapidamente se torna aborrecido. Mas a zona de conforto acabaria em breve… e é fora da nossa zona de conforto que descobrimos as nossas forças mais profundas, o que nos faz vibrar e seguir em frente e não desistir.

De joelhos na lama, literalmente, com os pés molhados e as pernas a doer, sem outra opção que não continuar para a frente. Desconfortável. E por vezes é apenas isso que temos que fazer na vida. Aceitar o desconforto, a lama que aparece no nosso caminho. Mesmo de joelhos, curvados perante os desafios do caminho, continuar a seguir em frente – a correr, a caminhar ou a rastejar, mas seguir o nosso caminho. Um passo de cada vez. Não para. Não para.

Ou agarrado desesperadamente à rocha para subir o penhasco escarpado, com uma garganta a pique abaixo de nós, a intimar a perna a subir. Por vezes é mesmo só isso que temos que fazer… agarrar-nos e aguentar. Não larga. Não larga.

São nestes momentos de desafio – na serra da Freita ou na selva da cidade – que percebemos quais são os nossos limites. E que afinal esses limites estão muito mais adiante do que pensávamos. Metaforicamente, a única forma de passar por um túnel escuro e encontrar a luz do outro lado, pode ser mesmo baixar e rastejar na lama.  

E não vale a pena insurgir-nos ou espernear ou lutar contra a realidade. Aceitar o sítio em que estamos nas nossas vidas, dar espaço para a dor, reconhecer que está lá – parar um pouco para tomar fôlego – mas continuar, com a confiança que podemos sarar e regenerar as feridas. Dar espaço ao medo sem lutar com ele, mas explicar a essas vozes receosas que nos querem fazer parar: “eu sei que estás aí, mas eu quero continuar”. Entre a multidão de emoções e vontades contraditórias que a mente nos atira, reconhecer que tudo isso não são mais do que criações da nossa mente, transitórias, e nenhuma delas isoladamente nos define. Podemos viver com essas contradições e tomar uma opção, sabendo que haverá sempre vozes discordantes na sinfonia da mente. A palavra “e” é muito poderosa. Tudo habita em nós ao mesmo tempo: Coragem e medo. Confiança e ansiedade. Energia e preguiça. Curiosidade e passividade. Vontade e desmotivação. As contradições vão estar lá sempre, não podemos esperar pelo silêncio desse diálogo interior para viver aqui e agora. O diálogo continua, cada voz a tentar chamar a nossa atenção, e nunca se vão calar – portanto, a única coisa que podemos fazer é deixá-las falar, deixar de lutar contra elas. Como aquele grupo barulhento no cinema a mastigar pipocas e comentar o filme… são chatos, mas não são o filme, e é muito mais interessante assistir ao filme (viver a vida) do que deixar os barulhentos das pipocas distrair-nos.

Tal como não podemos esperar que o mundo pare de rodar, que o vento deixe de soprar, que o mar fique calmo para enfrentar a tempestade – é no caos quotidiano que temos que procurar encontrar os nossos pontos de referência firmes e sólidos, as nossas certezas, a nossa verdade. A única coisa que podemos fazer ao longo do caminho, é ser fiéis à nossa verdade.

Não vale a pena esperar que tudo seja perfeito para apreciar a vista. Na lama, no frio, agarrado à rocha… se nos afastarmos da nossa luta individual, da nossa história egoísta, e olharmos à nossa volta… uff! A paisagem é linda, avassaladora. As borboletas voam, os pássaros cantam, a urze azul e violeta cobre os campos – a vida segue o seu curso, indiferente às lutas, aos sofrimentos ou alegrias dos biliões de seres vivos na gigantesca teia da vida. Por vezes é preciso também isso, sair da nossa luta egoísta e individual e contemplar o fluxo imparável do mundo à nossa volta.

Curiosamente, há pessoas que funcionam melhor nas subidas, em esforço. A subida é mais controlada, preparas-te para a dureza, ou o exame ou a reunião, e sobes, de forma controlada. Outras pessoas funcionam melhor nas descidas, em que basicamente é preciso uma confiança quase cega de que as pernas, olhos e cérebro conseguirão definir o sítio certo para colocar o pé, que não numa pedra ou ramo que nos faça estatelar e rebolar pela encosta abaixo. Outras pessoas têm pico de performance nas zonas planas, na corrida certa e ritmada com uma vista desimpedida. A subida é respiração controlada e força. O terreno plano é claro e desimpedido, num ritmo constante e certo de longa distância. A descida é fluxo de energia estonteante, puro instinto.

Mas talvez o aspeto mais marcante do trail como metáfora da vida, é a inevitabilidade do caminho marcado. Aquelas bandeirinhas cor de laranja que iam assinalando o caminho funcionam como um compasso, um tambor a marcar o ritmo da passada. Mesmo sem saber o que vai estar do outro lado da curva, uma coisa é certa – a bandeirinha laranja a marcar o caminho. Podemos esquecer totalmente os km, o objetivo final lá adiante, e focar-nos totalmente no caminho, em superar os obstáculos um a um. Como na vida, tudo parece mais fácil e natural quando temos um caminho bem traçado e com regras bem definidas, em que conhecemos o mapa, mesmo que não conheçamos os desafios que vão surgindo.

Numa corrida de 29.000 metros, tal como nos 29.000 dias das nossas vidas, não interessa quantas vezes a mente quer desistir, desde que as pernas continuem a correr: um passo atrás do outro, tac, tac, tac… Não para. Não para. Respira e não para. Mas quem define a nossa velocidade somos nós próprios. Não interessa quem nos ultrapassa ou quem ultrapassamos, se formos ao nosso ritmo. O único competidor que temos que ultrapassar é o nosso eu de ontem, para crescer. Nesse caminho entre o nosso eu de ontem e o nosso eu de amanhã, muitas vezes esquecemo-nos de agradecer a tudo e todos que nos apoiam. De forma literal, as sapatilhas que tornam a corrida mais confortável. As minhas Hoka Speed Goat começaram brilhantes e lindas. Acabaram ainda mais lindas, cheias de lama e em muito pior estado do que eu. Na verdade, todos os dias, há pessoas que aguentam com muito mais lama do que eu, e podemos ganhar ânimo nessa consciência da condição partilhada da vida humana, de sofrimento e alegria.

Este era o estado das minhas sapatilhas no final da prova:

Mas a verdadeira corrida começa depois de cortar a meta. Dar tempo a sarar as feridas e recuperar o fôlego, e encontrar novos desafios, novos caminhos para continuar caminhando. Não há meta, não há um estado final de perfeição para onde temos que correr desesperadamente na esperança de depois parar e descansar.

A todos os heróis quotidianos… não vale a pena correr desenfreado na ilusão de uma meta para depois viver a vida. Temos que a viver aqui e agora, no dia a dia, enquanto caminhamos. Citando uma conhecida marca de whiskey, “keep walking”. A caminhar, correr ou a rastejar, não para. Não para. Não larga. 29.000 metros, um passo de cada vez. 29.000 dias, um dia de cada vez.

Podem-me enviar sugestões de pessoas para entrevistar para karlosk.books@gmail.com ou no site www.karlosk.com/contacto

Este blog e podcast é uma experiência pessoal de descoberta. Quem quiser, é bem-vindo a juntar-se. Não esqueça de subscrever o blog e o podcast e recomendar a amigas e amigos. Podem ver mais informação sobre mim e as minhas publicações no site www.karlosk.com, subscrever o blog e ver o link para o podcast nas várias plataformas.

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